quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

TZU

1. Um longo dia- Fragmento A


Sun lavou o rosto com a pouca água que havia conseguido comprar sem dilapidar a pequena fortuna que havia acabado de ganhar.
Exércitos em campanha eram sociedades com regras próprias e extremamente mutáveis.
Estavam acampados há três dias em uma região sem córregos, rios ou fontes. Nestas condições os valores das apostas subiam, o preço da água no mercado interno e informal do exército subia, e apenas homens de visão (ou inconseqüentes) arriscavam provisões ou a própria energia (que ali significavam a mesma coisa) em empreendimentos financeiros.
Sun era um homem assim e agora com o corpo suado e com o peito e o pescoço coberto de sangue teria de vestir sua couraça leve de batedor e espião para ir realizar seu turno, sem descanso.
Embora fosse expressamente proibido realizar lutas e apostas durante campanhas, os oficiais faziam vistas grossas pois sabiam que o tédio era pior que a insubordinação, nestas horas de espera. Sabiam também que, embora não respeitassem seu general, que os mantinha ali e não sabia lidar com o moral da tropa, se este soubesse das lutas, algumas cabeças teriam de rolar, entre elas, as dos lutadores.
O que tornava possível a desobediência era o fato bem conhecido de que os soldados eram capazes de algo inimaginável ao homem comum: durante as lutas, não gritavam ou torciam, mas faziam o mais absoluto silêncio. As apostas eram feitas com sinais e mesmo dos lutadores só se ouvia barulho dos golpes e o arfar de seus pulmões entrecortados por gemidos abafados.
Enquanto ia para seu ponto de observação, Sun começava a sentir falta da energia que utilizara na luta. Seus braços tremiam e os músculos adutores da perna fraquejavam quando eram mais necessários: enquanto rastejava para aproximar-se do acampamento inimigo sem ser visto.
Obtivera esta tarefa no exército por ser especialmente pequeno e ter olhos de águia.
Seu tamanho também era a razão de ser figura certa nas lutas organizadas em campanha, pois tinham sempre o mesmo padrão, que divertia os outros soldados. Começava ponderado e cauteloso, até que, por ser pequeno, levava o primeiro golpe e então seu descontrole tornava-se aparente e parecia um pequeno diabo lutando incansavelmente. Não que isto lhe garantisse a vitória, mas garantia o entretenimento do grupo ver um sujeito tão pequeno e tão fora de si.
Enquanto observava o acampamento inimigo, lembrava os poucos detalhes da refrega em que estivera há pouco. Seus olhos pesaram e adormeceu.
Foi despertado por um som familiar que misturou-se com seu sonho, no qual assistia a sua irmã mais nova enquanto esta rabiscava caracteres da escrita chinesa na areia. O som era, em seu sonho, proveniente dos traços que ela fazia com um galho tosco de árvore. No limbo, aquele momento em que a razão encontra brevemente o sonho, a sensatez estalou em sua cabeça e pensou “ela sabe escrever?”.
No instante seguinte tornou-se totalmente desperto. Levantou, em um átimo, o seu rosto que tinha a metade que estava em contato com o solo, coberta por uma camada de areia e retesou os músculos. Era o som familiar de um homem rastejando.
Pela primeira vez viu-se arrependido das lutas que fazia nos acampamentos, e sentia que o seu desempenho seria seriamente prejudicado se, no instante seguinte surgisse um rosto detrás da pequena elevação que o solo fazia à sua frente e que era agora usada tanto por ele quanto por um espião inimigo, para ocultar-se.
Como o previsto, um par de olhos e uma testa coberta por uma bandana de um tom pastel, igual à sua, e certamente tingidas com a tinta proveniente da mesma região, surgiu em sua frente.
Sun havia esperado imóvel até então, para finalmente sacar sua faca e com um golpe certeiro enterra-la logo abaixo do topo da pequena elevação que não deveria ter mais que trinta centímetros considerando como base a areia que estava sob o peito dos dois homens.
A faca entrou na areia macia que espirrou avermelhada do outro lado, como se a pata de um cavalo ferido tivesse pisado ali à galope.
O outro homem foi perfurado logo abaixo de seu queixo, e embora o corte da traquéia fosse pequeno, pois o golpe fora um tanto lateral, a ponta da comprida faca penetrou entre as vértebras cervicais com um tranco que pareceu a Sun que havia enfiado a faca em um monte de pedras.
Talvez pelo corte, talvez pelo choque, o homem não disse nada naquela fração de segundo, e ficou ali, com os olhos arregalados e fixos em Sun. Suas pálpebras estavam cobertas de areia, como era típico dos espiões pouco experientes que por medo e excesso de zelo rastejam muito baixo e desde distâncias muito pequenas em relação a seu próprio acampamento, rezando para não se borrarem de medo. A esta distância, deveria estar andando abaixado, assim teria visto o inimigo atrás do montículo de areia. Rastejando, não tivera esta chance.
Por experiência, Sun sabia que o novato deveria estar sendo observado por algum grupo de veteranos, que se divertia às custas do zelo do cadáver.
Sun orou para que a faca não tivesse atravessado o pescoço, pois uma mancha vermelha na nuca não passaria desapercebida por espiões competentes. Estes eram sempre selecionados por sua visão.
Sem ter certeza se o inimigo estava morto ou vivo, pois este lhe fitava com um olhar vidrado, misto de espanto e interrogação, Sun enfiou as mãos por baixo da areia e lentamente tateou até encontrar as mãos do suposto cadáver. Agarrou-se firmemente a elas e cravando a ponta dos pés da areia, começou a puxar o infeliz, simulando os movimentos feitos com as mãos quando se rasteja.
Em poucos instantes havia se afastado o suficiente para esconder a si e ao seu inimigo.
Esperou alguns instantes. Caso tivesse sido descoberto logo saberia e poderia contemplar o próprio corpo de uma distância considerável. Mas nada aconteceu, então pôde voltar sua atenção à sua vítima para perceber que ele ainda estava vivo.
Arfava com alguma dificuldade e bolhas de sangue e catarro se formavam no corte, que assobiava baixinho a cada expiração.
Sun sentiu-se mal. Possivelmente, não era a primeira vez que matava um homem. Não tinha certeza pois durante a época em que lutara com a infantaria, no meio da loucura, dificilmente um único homem era responsável pela morte de outro, pois as lanças dançavam loucamente à frente, chocando-se com outras e impulsionadas pelo pavor e pela fúria. Agora era diferente, havia esperado, friamente, o momento de desferir um golpe mortal e agora contemplava os olhos do que não passava de um menino.
O maldito Tsao Pei, imperador de Chu não esperava os rapazes aprenderem nem mesmo a arrotar e os mandava para a guerra. Não era à toa que os espiões infiltrados diziam que sua força estava em um crescente vertiginoso, e que teria cem mil efetivos em poucos anos, enquanto que a previsão de Wu era muito menor.
Apesar de toda a misericórdia que sentiu naquele momento, não foi capaz de matar o rapaz. Despiu-o lentamente para vender sua roupa em um leilão que acabara de lhe vir à mente, que seria realizado em sua volta ao acampamento. Os homens gostavam de voltar para casa sem participar de batalhas e ostentando um prêmio como prova de alguma bravata que contariam para suas esposas e filhos.
A tarefa fora especialmente fácil, pois parecia que estava despindo um boneco de palha. O trauma provocado à medula do rapaz, pelo golpe certeiro de Sun o havia deixado paralisado.
Fez uma pequena trouxa com as roupas e vestiu a couraça fina e flexível por cima da sua. Resolveu voltar alguns metros em direção a seu próprio acampamento pois achava que já havia tido sorte o suficiente naquele dia.
A volta era feita por Sun, de maneira inteiramente inovadora. Não rastejava de ré, ou dando as costas para o acampamento inimigo, como outros faziam. Virava-se de costas para a areia e, sustentando a cabeça com os punhos, como se estivesse descansando, tracionava a gola de sua roupa com as mãos, para evitar que se enchesse de areia e impulsionava o corpo com as pernas, abertas e deitadas lateralmente, com movimentos rasteiros, que faziam sua silhueta lembrar uma rã.
Parou a uma distância respeitável e aguardou o sol mover-se. Voltaria sem informações sobre o acampamento, mas levava um prêmio. Outros espiões teriam mais sorte na observação.
Voltou ao acampamento e sentiu algo diferente no ar, à medida em que se aproximava dos sentinelas. Viu a expectativa nos olhos de um grupo de soldados que estava displicentemente sentado e compreendeu que algum outro espião o havia visto realizar seu feito. Pela expectativa dos presentes, o espião havia sido honesto no relato, pois era comum que se outro contasse a história primeiro, diminuiria o mérito do fato, por pura inveja e competição por promoções. Coisas da vida.
Sun tirou a couraça do inimigo e sustentou-a acima da cabeça, brevemente, com um sorriso enquanto procurava por seu oficial superior, o chefe da divisão de espiões.
As informações que haviam chegado eram desencontradas. Um espião relatara que o “o pequeno Sun matou e despiu um gigante que mais parecia um mongol”. Outro havia dito que Sun havia sido morto e “deixado nu pelo inimigo”.
Os ouvintes não se afetaram, pois quase todos conheciam Sun, e o tamanho das roupas que ele havia roubado deixariam claro o tamanho de seu inimigo. De fato, o menino morto não imitava um mongol nem que estivesse com quilos de peles nos ombros e atirando setas com um arco, andando a cavalo. Mas isto não desmerecia o feito.
Sun não escondeu isto de seu superior, pois sabia que a idade do menino era relevante para a guerra. Mesmo que a luta tivesse sido de igual para igual, sem o susto e inexperiência do inimigo, Sun teria levado a melhor, pois embora o tamanho de ambos fosse equiparável, os anos ainda não haviam colocado dureza nos músculos do rapaz e aspereza em suas mãos, como fizeram com Sun.
Sun era também, um homem muito polido e socialmente hábil, e raras vezes presunçoso, por isso seu superior lhe disse que ele participaria da reunião de campanha com o general e seus comandantes, que ocorreria ao final do dia, para contar o ocorrido.